Muvuca de sementes, com diversidade de espécies nativas, é preparada momentos antes de ser plantada diretamente no solo, no Mato Grosso (Foto: Tui Anandi/ISA)
Data da publicação: 28/03/2021
Produzida por redes de sementes em quase todo o país, a muvuca é uma técnica de semeadura direta barata, eficaz e que ainda promove a valorização das comunidades dos coletores e das sementes nativas de cada bioma
Por Ludmilla Balduino
Da Rede de Sementes do Xingu
A semente é um repositório da vida em evolução. Quando germinada, dá início a uma nova história de vida, que irá crescer, adaptar e reproduzir, criando novas sementes. Abastecida por uma eficaz carga genética, esse primeiro elo da cadeia alimentar e de vários outros ciclos da natureza é o que garante a sucessão ecológica. Justamente por ter essa potência vital, a semente é um elemento eficiente – e econômico – quando utilizada em restaurações de áreas desmatadas.
Atualmente, há duas principais formas de fazer restauração ecológica: através do plantio de mudas e por meio da semeadura direta. A mais popular é o plantio de mudas, que tem duas desvantagens econômicas: custo elevado e necessidade de manejo intenso após o plantio.
Já a técnica da semeadura direta, mais recente, é mais barata e demanda menos atenção com as plântulas germinadas, que já nascem no local que vão permanecer até o fim da vida.
A restauração de uma área degradada por meio da semeadura direta não acontece sem a existência de um elo fundamental: o coletor de sementes. Organizadas em redes, essas pessoas tornam-se responsáveis pela coleta, seleção, limpeza e distribuição de sementes nativas.
A seguir, listamos três características que evidenciam a importância do uso da muvuca, ofertada pelas redes de sementes, para a restauração ecológica da sua propriedade.
Muvuca de 88 quilos, com sementes nativas de 67 espécies diferentes. (Foto: Divulgação)
Enquanto mudas são caras, grandes e pesadas, sementes são menores, leves e baratas. Para se ter uma ideia da diferença de custos, para restaurar um metro quadrado de cerrado com capim nativo, são necessárias quatro mudas. Cada muda de capim custa em torno de R$ 20.
Enquanto isso, é possível restaurar jogando sementes diretamente naquele mesmo metro quadrado. Cada semente custa frações mínimas de um centavo de real. Portanto, mesmo semeando uma pequena área com milhares de sementes, o custo da restauração é reduzido em pelo menos metade do custo do plantio com mudas.
Soma-se a isso os gastos com transporte e manejo (mudas são mais pesadas e requerem mais cuidado), com materiais utilizados (mudas precisam de saquinhos e ferramentas para o transplante, enquanto sementes só precisam ser misturadas e jogadas no solo) e com recursos humanos.
Diferente das sementes, as mudas necessitam de cuidados depois do transplante. “Não dá pra largar a muda ali no campo. Muitas vezes será preciso irrigar, adubar, e cuidar de predadores, como a formiga, por exemplo”, diz Alexandre Sampaio, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e especialista em projetos de restauração florestal.
A técnica da semeadura direta – que consiste em misturar as sementes com a terra do local que será restaurado, criando um composto chamado muvuca, e depois dispersando a muvuca no solo – imita processos naturais e, por isso, dispensa cuidados extras. “Quando a gente faz restauração ecológica na época certa, imitando os processos naturais, os brotos mais fortes vão crescer até a fase adulta e gerar novas sementes, sem a necessidade de cuidados com irrigação, adubação e predadores”, diz Alexandre.
Yakawa Ikpeng é fotografada em frente da sua casa, no Território Indígena do Xingu (MT) segurando um cesto de palha com sementes de Carvoeiro (Foto: Ayrton Vignola)
A demanda por sementes nativas para a restauração tem gerado renda extra para agricultores familiares, povos originários e comunidades tradicionais em todo o país.
Juntos, esses coletores de sementes reúnem-se em redes organizadas, que fornecem os insumos para restauração em áreas semelhantes às que vivem. Essas redes, hoje consolidadas, estão formando o redário: um grupo de redes criado com o objetivo de expandir as relações comerciais, disseminar conhecimento e fortalecer as comunidades.
“O redário tem sido uma experiência muito boa. Quem está no mercado há mais tempo ajuda os iniciantes, as pessoas ficam mais confortáveis em pedir e oferecer ajuda. O produto é o mesmo, então, muitas vezes, os problemas e as soluções também são os mesmos”, diz Camila Prado Motta, presidente da Rede de Sementes do Cerrado
Além disso, segundo Camila, a estruturação do redário protege as comunidades de grandes empresas interessadas no lucro através da oferta exclusiva de sementes.
O envolvimento da comunidade na coleta de sementes é garantia de sucesso para todos, de acordo com Severino Ribeiro, diretor-presidente do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (CEPAN), que no momento, entre os projetos principais, trabalha na recuperação da bacia do Rio Doce, em Minas Gerais.
“Não se faz restauração sem participação. É preciso criar cadeias capazes de mobilizar centenas de pessoas empenhadas no trabalho de coletar sementes. Quando isso acontece, reduzimos os custos e ganhamos escala. Isso abre oportunidades sociais de geração de emprego e renda. É possível abrir frentes de negócio com grandes demandadores, como as empresas de energia e as do setor agrícola.”
Pequi do Xingu, o maior e mais rico em polpa dentre todas as variações da espécie, está entre os itens comercializados na muvuca da Rede de Sementes do Xingu; na foto, Ana Cláudia Timóteo Barbosa, coletora do Projeto de Assentamento (PA) Dom Pedro, beneficiando pequi (Foto: Tui Anandi/ISA)
Um equívoco comum no processo de restauração ecológica é plantar mudas de espécies em áreas degradadas onde elas não cresceriam naturalmente. Na semeadura direta, as sementes fornecidas pelas redes são originárias de terrenos com características ambientais similares aos locais onde serão semeadas. Isso desenvolve um senso de proteção dessas espécies nos territórios onde as sementes foram coletadas e onde elas serão germinadas.
“Antigamente, nosso grupo só plantava frutíferas para ter sombra e alimento, mas não havia essa visão de que as árvores do cerrado em pé também podem gerar renda, e nem que elas são importantes para a manutenção do equilíbrio ambiental. Hoje a gente sabe que, além da renda extra, essas plantas vivas também dão sombra e são fundamentais para preservar nossas nascentes de água”, diz Eliane Righi, coletora e elo da Associação Rede de Sementes do Xingu, moradora do assentamento rural Bordolândia, em Serra Nova Dourada (MT).
Além disso, de acordo com artigo publicado pelos engenheiros da Embrapa Florestas, Amilton Antonio Baggio e Moacir José Sales Medrado, é fundamental preservar a biodiversidade para também preservar a produção agropecuária. “A biodiversidade pode permitir a criação de novas variedades e raças, com objetivos econômicos, sanitários, técnicos e ecológicos. Ademais, a utilização destes recursos podem contribuir também para modificar determinadas práticas, como a substituição de agrotóxicos por controle biológico”, afirmam os cientistas.